sexta-feira, 11 de março de 2011

Estudos para uma bailaora andaluza e os elementos do Flamenco

Por Isadora  Eckardt da Silva


    A arte Flamenca, tal qual a conhecemos nos nosso dias, é resultante do processo evolutivo de uma manifestação sócio cultural que se inicia na região de Andaluzia, sul da Espanha, no final do século XVIII. Suas bases musicais, rítmicas e poéticas assentan-se na riqueza do folclore andaluz, resultado da mescla de povos e culturas que povoaram esta região ao longo da história, tais como: ciganos, árabes e judeus.
    A origem dos diferentes estilos (chamados Palos) do Flamenco situa-se, principalmente nas cidades de Sevilha, Cádiz e Granada. Outras províncias de Andaluzia, bem como outras regiões da Espanha, como Extremadura e Múrcia, também contribuíram com diferentes estilos e com suas ramificações.
   Os Palos fundamentais do Flamenco são as Soleares, as Siguiriyas, os Tangos e os Fandangos, dos quais derivam os demais ritmos.
   Os primeiros relatos de manifestações de uma dança ancestral à Flamenca foram feitos por intelectuais estrangeiros, que visitavam a Espanha e que, nos bairros periféricos, não frequentados pelos espanhóis abastados, descobriram as primeiras tabernas onde estes artistas primitivos se apresentavam. Nessa época, no final do séc. XVIII, era feita uma mistura de bailes populares, flamencos e escola bolera(bailes com castanholas). Pouco a pouco o estilo flamenco foi se impondo e incorporando elementos de outras danças, até formar suas próprias características.
    Profissionalmente, a dança Flamenca se consolidou nas festas organizadas pelas "Academias de Baile de Sevillanas" e em alguns locais típicos como as "Cuevas del Sacromonte", em Granada ( cidade habitada principalmente por ciganos). Mas é nos Cafés Cantantes, surgidos no final do século XUX, que a dança Flamenca, bem como a forma de tocar e cantar Flamenco, adquire sua personalidade definitiva.
    A partir de então a dança flamenca evolui técnica e cenicamente, atingindo "status" de esola de dança, hoje apreciada e praticada nos mais diferentes países, tais como: Japão, Inglaterra, Bélgica, frança , Estados Unidos, Alemanha, Brasil e praticamente toda a América Latina.
    O poeta pernambucano João Cabral de melo Neto trabalhou na embaixada do brasil na espanha, tendo assim desenvolvido uma grande paixão pelo Flamenco e suas bailaoras. Devido a essa paixão, João cabral escreveu um poema dividido em seis partes sobre estas bailarinas, o qual explicarei no presente trabalho.
    O poeta faz claras refer~encias a elementos do Flamenco ao longo do poema, denotando que não era um mero admirador desta dança, ao contrário, ele entendia de fato como ela funcionava e quais elementos a compunham.
    Na primeira parte do poema, João cabral começa fazendo referência a um dos palos flamencos, a siguiriya. este palo é sempre usado em músicas tristes, com letras chorosas e melancólicas. A origem destes palos tristes está no fato de que os ciganos sempre foram um povo que sofreu muitas perseguições e era sempre excluído da sociedade, portanto, eles cantavam e dançavam tais músicas tristes para expressar a sua dor perante à vida. Assim, esses ritmos tristes exigem, quando dançado, que a bailaora se mantenha sempre séria, pois não se comportaria com esta dança uma expressão sorridente.
     Nos versos em que fala "carne em agonia", "só nervos" e "carne toda em carne viva", o poeta está se referindo e "el duende". De acordo com o folclore da dança flamenca, el duende é uma espécia de entidade, de espírito, que toma conta da bailarina na hora de dançar. É como se a bailarina incorporasse este espírito, pois o Flamenco não é dançado com frieza,  é preciso haver sentimento, é quase como se fosse algo teatral. Portanto os versos fazem referência a esse transe no qual a bailarina entra na hora de dançar.
     Nos versos que dizem que a bailaora é capaz de acender-se estando fria" e "incendiar-se com nada", o poeta menciona sentimentos trazidos por "el duende", pois se o Flamenco não pode ser dançado friamente, o oposto disso é o calor, o fogo que uma bailarina deve trazer consigo.
     Na segunda parte do poema, João Cabral fala na "parte que domina" e na "parte que se rebela", ou seja, que nesta dança há alguém que manda e alguém que obedece. Aqui ele faz referência ao fato de que, no Flamenco, dependendo da ocasião, a baolaora segue a música ou a música segue a bailarina.
     Quando mais de uma bailaora está dançando, todas devem seguir o mesmo ritmo para não haver disparidade na coreografia. Neste caso então, quem dita o ritmo é o guitarrista, que deve ser seguido pelas bailaoras. Daí o poeta compará-la a uma égua, pois aqui é ela que conduz a música e a dança, assim como é a égua que leva a cavaleira.
      Na terceira parte do poema, João Cabral faz referência ao caráter percurssivo da dança flamenca. Afinal, esta baseia todas as suas coreografias nos ritmos dos diferentes palos, cada um com sua própria contagem de tempos e compassos.
      Quando o poeta diz que a bailaora "a cabeça, atenta, inclina,/como se buscasse ouvir/ alguma voz indistinta", está fazendo alusão ao fato de que a bailaora precisa primeiro ouvir um ou dois compassos da música para captar a velocidade e a contagem de seu ritmo, para só depois começar a dançar, pois o compasso da bailaora e o dos músicos devem estar sempre em sintonia. o poeta compara esta percurssão e esta sintonia com a telegrafia e com o código morse.
       Por ser a telegrafia uma espécie de comunicação, o poeta faz alusão a um diálogo no qual a bailaora participa quando menciona "a mensagem transmitida", "aquelas respostas/que suas pernas pronunciam" e "do outro lado da linha", só para citar alguns exemplos. e de fato, há um diálogo no Flamenco entre a bailaora e o músico que se compõe de alguns tipos de mensagens, tais como: a chamada, a marcação da letra e os jaleos.
       A "chamada" é um sapateado que a bailaora faz, normalmente mais ruidoso, para visar o guitarrista de alguma coisa. Ela Pode tanto querer avisar que vai começar a dançar, como que vai para de fazê-lo ou ainda que fará apenas uma pausa. Na hora em que estas chamadas são realizadas, pode haver música, mas nunca há canto, para que este não "faça barulho" atrapalhe o sapateado.
       A "marcação da letra" é justamente o oposto da chamada, ou seja, a bailaora apenas marca a música, mas não sapateia porque há canto. A bailaora pára o sa´pateado para avisar aos músicos que, neste momento, eles podem cantar, e ela fará silêncio.
        Os jaleos são estímulos gritados para animar a dança. Eles podem tanto ser da parte da bailaora, como da parte dos músicos ou das pessoas da platéia. São estas "conversas" que o poeta faz referência nesta parte do poema.
        Na quarta parte do poema, João cabral compara o jeito que um camponês trata a terra com o jeito que a bailaora trata o tablado, dizendo que ambos tencionam amaciar o solo. Aqui o poeta está fazendo referência ao estilo do sapateado da dança flamenca. No sapateado americano, os bailarinos apenas tocam de leve o tablado, fazendo um som mais agudo e baixo. Já no Flamenco a bailaora precisa bater o pé com força no tablado, produzindo assim um som grave e na maioria das vezes alto. Há clara referência à força e à energia deste sapateado nos seguintes versos: "Ela não pisa na terra/como quem a propicia/para que lhe seja leve". 'Ela a trata com a dura/ e muscular energia".
         Nesta parte do poema, fala-se que as bailaoras normalmente possuem pernas muito fortes, dada a força empregada no seu sapateado. João Cabral descreve essas pernas como "pelos troncos dessas pernas/fortes, terrenas, maciças".
         Na quinta parte do poema, João cabral diz que, em alguns momentos, a bailaora pode ser compara a uma estátua, o que pode ser notado nos seguintes versos " com a mesma posição que talhada em pedra:/um momento está estátua".
         O poeta alude aos "cortes", que tanto podem estar no meio da coreografia, como podem ser o movimento derradeiro, aquele que encerra a coreografia. O corte na música normalmente se trata de uma pausa, e a bailaora segue essa pausa sonora com uma parada em seus movimentos.A pausa da bailaora pode ser feita com diversos "movimentos de corte", como uma virada de cabeça, um movimento de braços ou um golpe de sapateado. E durante estas pausas,a bailaora fica como uma estátua, não mexe nem os olhos, respira de leve, tudo para não se mexer mesmo. Nestes momentos, a bailaora se parece com uma estátua, imóvel e impassível, exatamente como nos versos. o contrário dos movimentos cortados, então, são os movimentos continuos.
         Na última parte do poema, João cabral faz referência às roupas usadas pelas bailaoras na dança flamenca, como diz no seguinte verso: "saias folhadas e crespas". Tradicionalmente, o Flamenco é dançado com vestidos ou saias com muito pano. Isto significa saias muito rodadas e com muitos babados que também são usados na dança para "dançarem junto com a bailaora", ao girarem junto com ela em seus corrupios. a bailaora também pega em sua saia para balançá-la e fazê-la dançar com ela.
         O poeta também destaca os movimentos de braços e mãos feitos pela bailaora nos seguintes versos: "mas também desta outra flora/a que seus braços dão vida". Ao comparar os braços com a flora, ele está fazendo uma alusão aos braços da bailaora que podem ficar compridos como galhos longos, ou curvados como galhos torcidos, dependendo da coreofrafia e do estilo da bailaora. O braço esticado é inspirado na postura do balé clássico, enquanto o braço curvado tem sempre sua curva feita nos cotovelo e foi herdado das danças mais tristes dos ciganos, pois a bailaora fica mais "fechada" com esta postura.
         Já os movimentos das mãos se parecem com flores, tanto é que se diz que as mãos de uma bailaora de Flamenco devem ter "floreios". Uma mão com floreios que dizer que a bailaora quebra bastante o pulso para girar a mão e separa bem os dedos ao fazer estes giros, fazendo assim as mãos se parecerem flores que desabracham. Daí o poeta fazer menção à flora.


                                Segue abaixo o poema:




 ESTUDOS PARA UMA BAILAORA ANDALUZA - JOÃO CABRAL DE MELO NETO


Artista: Renata Domagalska
Artista: Renata Domagalska
Dir-se-ia, quando aparece
dançando por siguiriyas,                                  
que com a imagem do fogo
inteira se identifica.

Todos os gestos do fogo
que então possui dir-se-ia:                              
gestos das folhas do fogo,
de seu cabelo, sua língua;
gestos do corpo do fogo,
de sua carne em agonia,
carne de fogo, só nervos,
carne toda em carne viva.

Então, o caráter do fogo
nela também se adivinha:
mesmo gosto dos extremos,
de natureza faminta,
gosto de chegar ao fim
do que dele se aproxima,
gosto de chegar-se ao fim,
de atingir a própria cinza.

Porém a imagem do fogo
é num ponto desmentida:
que o fogo não é capaz                                          
como ela é, nas siguiriyas,
de arrancar-se de si mesmo
numa primeira faísca,
nessa que, quando ela quer,
vem e acende-a fibra a fibra,
que somente ela é capaz
de acender-se estando fria,
de incendiar-se com nada,
de incendiar-se sozinha.

Subida ao dorso da dança
(vai carregada ou a carrega?)
é impossível se dizer
se é a cavaleira ou a égua.
Ela tem na sua dança
toda a energia retesa
e todo o nervo de quando
algum cavalo se encrespa.

Isto é: tanto a tensão
de quem vai montado em sela,
de quem monta um animal
e só a custo o debela,
como a tensão do animal
dominado sob a rédea,
que ressente ser mandado
e obedecendo protesta.

Artista: Renata Domagalska

                                                                                                                
Então, como declarar
se ela é égua ou cavaleira:
há uma tal conformidade
entre o que é animal e é ela,
entre a parte que domina
e a parte que se rebela,
entre o que nela cavalga
e o que é cavalgado nela,
que o melhor será dizer
de ambas, cavaleira e égua,
que são de uma mesma coisa
e que um só nervo as inerva,
e que é impossível traçar
nenhuma linha fronteira
entre ela e a montaria:
ela é a égua e a cavaleira.

Quando está taconeando
a cabeça, atenta, inclina,
como se buscasse ouvir
alguma voz indistinta.
Artista: Renata Domagalska

Há nessa atenção curvada
muito de telegrafista,
atento para não perder
a mensagem transmitida.

Mas o que faz duvidar
possa ser telegrafia
aquelas respostas que
suas pernas pronunciam
é que a mensagem de quem
lá do outro lado da linha
ela responde tão séria
nos passa despercebida.

Mas depois já não há dúvida:
é mesmo telegrafia:
mesmo que não se perceba
a mensagem recebida,
se vem de um ponto no fundo
do tablado ou de sua vida,
se a linguagem do diálogo
é em código ou ostensiva,
já não cabe duvidar:
deve ser telegrafia:
basta escutar a dicção
tão morse e tão desflorida,
linear, numa só corda,
em ponto e traço, concisa,
a dicção em preto e branco
Artista: Renata Domagalska

Ela não pisa na terra
como quem a propicia
para que lhe seja leve
quando se enterre, num dia.

Ela a trata com a dura
e muscular energia
do camponês que cavando
sabe que a terra amacia.

Do camponês de quem tem
sotaque andaluz caipira
e o tornozelo robusto
que mais se planta que pisa.

Assim, em vez dessa ave
assexuada e mofina,
coisa a que parece sempre
aspirar a bailarina,
esta se quer uma árvore
firme na terra, nativa,
que não quer negar a terra
nem, como ave, fugi-la.

Árvore que estima a terra
de que se sabe família
e por isso trata a terra
com tanta dureza íntima.

Mais: que ao se saber da terra
não só na terra se afinca
pelos troncos dessas pernas
fortes, terrenas, maciças,
mas se orgulha de ser terra
e dela se reafirma,
batendo-a enquanto dança,
para vencer quem duvida.

Sua dança sempre acaba
igual como começa,
tal esses livros de iguais
coberta e contra-coberta:
com a mesma posição
como que talhada em pedra:
um momento está estátua,
desafiante, à espera.
Artista: Renata Domagalska

Mas se essas duas estátuas
mesma atitude observam,
aquilo que desafiam
parece coisas diversas.

A primeira das estátuas
que ela é, quando começa,
parece desafiar
alguma presença interna
que no fundo dela própria,
fluindo, informe e sem regra,
por sua vez a desafia
a ver quem é que a modela.

Enquanto a estátua final,
por igual que ela pareça,
que ela é, quando um estilo
já impôs à íntima presa,
parece mais desafio
a quem está na assistência,
como para indagar quem
a mesma façanha tenta.

O livro de sua dança
capas iguais o encerram:
com a figura desafiante
de suas estátuas acesas.

Na sua dança se assiste
como ao processo da espiga:
verde, envolvida de palha;
madura, quase despida.

Parece que sua dança
ao ser dançada, à medida
que avança, a vai despojando
da folhagem que a vestia.
Artista: Renata Domagalska
                                                                   
Não só da vegetação       
de que ela dança vestida
(saias folhudas e crespas
do que no Brasil é chita)
mas também dessa outra flora
a que seus braços dão vida,
densa floresta de gestos
a que dão vida a agonia.

Na verdade, embora tudo
aquilo que ela leva em cima,
embora, de fato, sempre,
continui nela a vesti-la,
parece que vai perdendo
a opacidade que tinha
e, como a palha que seca,
vai aos poucos entreabrindo-a.

Ou então é que essa folhagem
vai ficando impercebida:
porque terminada a dança
embora a roupa persista,
a imagem que a memória
conservará em sua vista
é a espiga, nua e espigada,
rompente e esbelta, em espiga.







                        





    

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